Sim, o título desse, pequeno, texto é um clichê. E é juridicamente incorreto (talvez furtadas fosse mais certo). Porém, não se pode negar que uma infância perpassada pelo racismo é uma infância perdida. Isso porque, se levarmos em consideração que não nascemos diferenciando ou odiando o próximo, temos que o racismo é algo ensinado, sobretudo com base em atitudes tomadas por adultos junto, ou em relação a crianças.
Mas o que seria o racismo na infância? Nos dizeres de Maria Letícia Machado e de Nayara de Souza Araújo, e como dissemos antes (atitudes de adultos junto, ou em relação a crianças): “Uma prática comum do racismo é sua forma velada, quando a pessoa não percebe como seu ato é racista, porém esses atos impactam diretamente na forma como as crianças se percebem. Exemplos disso são associar beleza a pessoas brancas e a malandragem a pessoas negras; pentear cabelos lisos enquanto os elogia e, por sua vez, reclamar dos cabelos crespos, enquanto os chamam de difíceis e ruins; ensinar que lápis ‘cor de pele’ é rosa claro, fazer elogios deturpados como ‘apesar de negro você é muito bom em (…)’, entre tantos outros. Essas práticas são acometidas tanto pelos adultos quanto entre as crianças, que por sua vez, reproduzem aquilo que veem.”
Mais do que isso, o racismo também se espraia pela falta de oportunidades. Em números estatísticos, segundo o Unicef, em estudo do ano de 2009, intitulado “O Impacto do Racismo na Infância”, temos que, há cerca de 12 anos, 54,5% das crianças, no Brasil, eram negras ou indígenas. Por outro lado, em comparação com crianças brancas, em que 32,9% eram atingidas pela pobreza, as crianças pretas eram atingidas em 56% de sua totalidade, ou seja, o risco de uma criança preta ser pobre era 70% maior que o de uma criança branca.
Além disso, indicamos que uma criança indígena, tinha, à época, de acordo com dados do IBGE/PNAD quase três vezes mais chances de estar fora da escola que uma criança branca. Por sua vez, uma criança preta tinha 30% a mais de chance de estar fora da escola que uma criança branca. Mais: ao chegar à adolescência, um jovem preto tem quase três vezes mais chance de ser assassinado que um jovem branco, conforme estudo chamado “Índice de vulnerabilidade Juvenil à Violência”, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
E, como se já não bastasse a ausência de meios de se desenvolver intelectualmente, também temos que, desde 2015, caiu, de 76% para 26%, o número de crianças que têm café da manhã, almoço e jantar todos os dias, de acordo om dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional do Ministério da Saúde. O resultado disso? Crianças desmaiando de fome, ou agindo de forma agressiva em sala de aula, como se pode ver na reportagem do dia 17 de novembro deste ano, intitulada: “’Minha aluna desmaiou de fome’: professores denunciam crise urgente nas escolas brasileiras.’”.
Inclusive, ao fazer um comentário sobre tal matéria, indicando que este seria legado de um certo “alguém”, recebi comentários do tipo: “Fome sempre existiu”, ou “A culpa é do secretário municipal de educação”. De certo, não se sensibilizam com a fome alheia, ou então sequer leram a matéria, ao ver que a fome vem de casa, além de não saberem nada de repasses orçamentários da União aos Municípios.
Julgamentos à parte, temos que uma criança que cresce em um contexto de violência, sem oportunidade de estudar, de ter um dia de paz, de sequer fazer refeições corretas durante os dias, não tem como se desenvolver corretamente, sem passar por algum trauma ou por algum tipo de questionamento sobre si próprio. Passará, certamente, a odiar àqueles que deveriam zelar por ela, ou então a detestar sua própria imagem. Quem sabe, ser impelido a escolhas intempestivas, que, ultimamente, podem levar ao seu precoce passamento.
Vale dizer, também, que esse tipo de racismo, que atinge a primeira infância, também custa, e muito, dinheiro público. De acordo com Mário Lisboa Theodoro, para superar os indicadores de desigualdades raciais na população brasileira, naquele ano de 2009, seriam necessários R$ 67,2 bilhões, investidos em curto prazo. Com essa soma em dinheiro, seria possível equalizar os indicadores de educação, habitação e saneamento, e como consequência desencadear um processo de equilíbrio na igualdade de acesso aos serviços para os diferentes grupos da sociedade. Esse valor pode ser revertido em ações comprometidas com a cidadania e com a ética, que buscam a promoção da igualdade étnico-racial, resultando em efeitos positivos na educação de crianças e adolescentes.
No entanto, tal valor é menor do que o destinado, em proposta para o orçamento de 2022, para o Ministério da Defesa, que é do montante de R$ 117,05 bilhões tão somente para despesas primárias. Dá-se mais importância a um setor cujas ações têm sido mais nocivas à população do que a uma política de bem-estar social, e erradicação de uma situação criminosa. Sinal dos tempos em que se fala em racismo reverso, ou em dia da consciência branca.
E como contribuir para uma infância sem racismo? Reproduzo, aqui, as dez maneiras indicadas no, citado, estudo do Unicef, que seguem:
1. Eduque as crianças para o respeito à diferença. Ela está nos tipos de brinquedos, nas línguas faladas, nos vários costumes entre os amigos e pessoas de diferentes culturas, raças e etnias. As diferenças enriquecem nosso conhecimento.
2. Textos, histórias, olhares, piadas e expressões podem ser estigmatizantes com outras crianças, culturas e tradições. Indigne-se e esteja alerta se isso acontecer – contextualize e sensibilize!
3. Não classifique o outro pela cor da pele; o essencial você ainda não viu. Lembre-se: racismo é crime.
4. Se seu filho ou filha foi discriminado, abrace-o, apoie-o. Mostre-lhe que a diferença entre as pessoas é legal e que cada um pode usufruir de seus direitos igualmente. Toda criança tem o direito de crescer sem ser discriminada.
5. Não deixe de denunciar. Em todos os casos de discriminação, você deve buscar defesa no conselho tutelar, nas ouvidorias dos serviços públicos, na OAB e nas delegacias de proteção à infância e adolescência. A discriminação é uma violação de direitos.
6. Proporcione e estimule a convivência de crianças de diferentes raças e etnias nas brincadeiras, nas salas de aula, em casa ou em qualquer outro lugar.
7. Valorize e incentive o comportamento respeitoso e sem preconceito em relação à diversidade étnico-racial.
8. Muitas empresas estão revendo sua política de seleção e de pessoal com base na multiculturalidade e na igualdade racial. Procure saber se o local onde você trabalha participa também dessa agenda. Se não, fale disso com seus colegas e supervisores.
9. Órgãos públicos de saúde e de assistência social estão trabalhando com rotinas de atendimento sem discriminação para famílias indígenas e negras. Você pode cobrar essa postura dos serviços de saúde e sociais da sua cidade. Valorize as iniciativas nesse sentido.
10. As escolas são grandes espaços de aprendizagem. Em muitas, as crianças e os adolescentes estão aprendendo sobre a história e a cultura dos povos indígenas e da população negra; e como enfrentar o racismo. Ajude a escola de seus filhos a também adotar essa postura.
Se fizermos nossa parte, a resolução é mais simples que parece.
Referências:
1 – MACHADO, Maria Letícia e ARAÚJO, Natália de Souza. Primeira Infância e negritude: quando o racsmo inicia seu impacto na vida da pessoa negra? Disponível em: https://www.clp.org.br/primeira-infancia-e-negritude-quando-o-racismo-inicia-seu-impacto/, acesso em 22, nov. 2021.
2 – Brasil, 2009. Fundo das Nações Unidas para a Infância. UNICEF. O Impacto do racismo na infância. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/media/1731/file/O_impacto_do_racismo_na_infancia.pdf, acesso em 22, nov. 2021.
3 – Brasil, 2017. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência 2017: Desigualdade Racial e Municípios com mais de 100 mil habitantes. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/indice-de-vulnerabilidade-juvenil-a-violencia-2017-desigualdade-racial-e-municipios-com-mais-de-100-mil-habitantes/, acesso em 22, nov. 2021.
4 – Brasil, 2021. Revista Carta Capital. Apenas 26% das crianças de 2 a 9 anos no Brasil fazem três refeições por dia. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/26-das-criancas-de-2-a-9-anos-no-brasil-nao-fazem-tres-refeicoes-por-dia/, acesso em 22, nov. 2021.
5 – Brasil, 2021, O Globo em parceria com BBC News. ‘Minha aluna desmaiou de fome’: professores denunciam crise urgente nas escolas brasileiras. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2021/11/17/minha-aluna-desmaiou-de-fome-professores-denunciam-crise-urgente-nas-escolas-brasileiras.ghtml, acesso em 22, nov. 2021.
6 – THEODORO, Mario Lisboa. “O Custo do Racismo” in “O Compromisso das empresas com a promoção da igualdade racial”. Instituto Ethos. 2006, p. 54.
Por Daniel Hilário, advogado do escritório Cassel Ruzzarin Santos Rodrigues e assessor jurídico do Sindiquinze
Publicado originalmente no @direitodacriancaempauta
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